JOSÉ FERNANDES DA SILVA - CONTO: O FIDALGO DE CARVALHINHOS


A Quinta de Carvalhinhos localizava-se no Baixo Minho, no concelho de Barcelos, e no dealbar do século que antecedeu este mantinha ainda uma área extensíssima, murada e, agricolamente, permanecia muito bem trabalhada e produtiva.

Era assim nomeada por albergar imensas e imponentes carvalhas, para além de outras centenas de menor porte, a nascerem, a crescerem e a tornarem-se adultas, garantindo a preservação e sustentabilidade daquela espécie autóctone.

Ao fundo, com as margens adensadas de amieiros, salgueiros e choupos, corria um ribeiro, não havendo memória de ver o seu leito seco. Nas águas limpinhas vogava a fartura piscícola era mais do que evidente, sendo tido como um curso de água em que abundavam trutas e enguias.

Num dos lados da propriedade, tinha sido construída uma comprida levada, que represava o precioso líquido para rega e para mover duas pesadas mós graníticas, as obreiras de outros tantos moinhos.

Do ribeiro para cima existia uma longa veiga, principiando o terreno, então, a elevar-se levemente, para no topo, já em plano elevado, haver sido implantada uma moradia cómoda e imponente, toda em granito, com portas, janelas, varandas e alpendres laboriosamente rendilhados por hábeis canteiros.

Os documentos coevos encontrados referiam que o imóvel remontava aos finais do século XVI, quando um fidalgo ali chegou vindo do Oriente, onde ocupou cargos de destaque, ao serviço da monarquia pátria, amealhando uma fortuna considerável...

A narrativa a que nos vamos reportar tem o seu cenário, por assim dizer, na primeira metade da centúria de XIX, quando D. Cosme de Ataíde era o poderoso senhor de Carvalhinhos.

Fora-lhe escolhida para esposa uma prima carnal, por sinal bem feiosa, sobre quem se bichanava até ter apreciável rodagem sexual, mas a verdade é que havia que precaver a fortuna que herdaria, não fosse parar a família de fora...

D. Cosme ouvira dizer coisas e loisas da priminha, mas não lhes dera crédito. Porém, lá chegou a hora de constatar que, efetivamente, não era o primeiro a usufruir da intimidade da afortunada cônjuge.

No entanto, embora atormentado por tal mágoa, a verdade é que o consórcio não havia de durar muitos anos, já que a prevaricadora, devido a graves problemas de saúde, pelos seis lustres de aniversários entregaria a alma ao Criador. E pelos vistos,… agradecida!, asseveravam algumas línguas populares, por alegadamente não suportar mais o inferno em que se tornou a sua coabitação na Quinta de Carvalhinhos...

De qualquer maneira, em resultado deste enlace por conveniência, dez meses volvidos duma boda de arromba, que fizera eco por aquelas bandas, chegara ao mundo um menino, que passou a ser o morgadinho e que foi batizado com o nome de Arnaldo.

Mimado e protegido por todos, a criança foi crescendo, mas exibindo continuadamente comportamentos infantis, dando a impressão de viver num mundo que seria sua pertença!

Na idade própria de ser educado para as letras, não dava uma para a caixa. O pai ainda pensou em enveredá-lo pelo sacerdócio, ou em fazê-lo entrar numa qualquer ordem religiosa, mas logo recuava, por considerar que até em tais áreas não deixaria de ser um… idiota e inculto! Portanto, pesados todos os prós e os contras no espaçoso prato da balança da vida, decidiu deixar correr e ir pugnando para que, pelo menos, se tornasse num homem de bem e se interessasse pela fortuna que lhe viria a pertencer.

Arnaldo de Ataíde já rondava as duas arrobas de outonos, porque vira a luz do mundo no mês de outubro de 1818, e não mostrava quaisquer ideias e apetências para o casamento.

Era comum escutarem-se-lhe conversas de chacha, ainda por cima recheadas de risadinhas despropositadas! Mas, ao invés, conseguia ser bondoso, pacífico, poupado...

"Ó Naldinho (diminutivo por que todos o tratavam), é preciso pensares em trazer uma mulher para viver contigo, porque os anos vão andando e eu, a passadas largas, rumo para o ocaso da vida... E, meu filho, não gostava de desaparecer sem ver a nossa casa cheia de netinhos!" - dizia o progenitor, sondando as intenções do descendente.
"Ó snr. pai, eu sinto-me tão bem assim..."

"Pois sentes, filho, mas eu gostava que tu desses continuidade à nossa família..."

E tais diálogos eram ensaiados por vezes e resultavam sempre infrutíferos.

Quando D. Cosme enviuvara, não chegara sequer a pensar em voltar a consorciar-se...

Aquela facada” de não encontrar a prima virgem, marcara-o indelevelmente...

Se calhar, até seria uma das razões para não insistir muito com o filho, embora aqui e ali fosse cogitando na absoluta necessidade de providenciar uma noiva rica para Arnaldo.

Por esse tempo, saído da Revolução da Maria da Fonte, o Nel Peta, que era seu criado desde menino, apresentou-se na quinta quando liberto das obrigações castrenses.

Era um serviçal em quem D. Cosme sempre depositara desmedida confiança, e que estimava o seu filho como se de um irmão se tratasse. De tal forma que quando o seu criado-chefe, já de velho, caiu na situação de acamado, esperando a misericórdia divina, o fidalgo, sem evasivas, entregou naturalmente a pasta ao Nel Peta.

Era um rapaz sempre bem-disposto, risonho, bem-apessoado, que gostava de se apresentar asseado e com decência...

D. Cosme de Ataíde, de tempos a tempos, apreciava fazer longas jornadas, preferindo, quase sempre, Lisboa, onde tinha familiares e, sobretudo, um montão de amigos.

No verão de 1851, tendo D. Cosme ido a um funeral de um nobre seu amigo, lá para terras de Viriato, entendeu que achara a candidata certa para desposar o seu Arnaldo. Tratava-se, também, de uma trintona, que a seu ver reunia alguns dotes atrativos.

Regressado a Barcelos, passou palavra ao filho e logrou convencê-lo...

Os pais da noiva fizeram questão de que o casório se realizasse no seu terrunho, o que não se tornou difícil de ser acordado.

Já em Barcelos, discreto e subtil, D. Cosme abordou o filho e, indo por longe, não lhe foi complicado escutar o que pretendia.

"Ó Naldinho, então?… Na primeira vez que dormiste com a tua mulher, que tal correram as coisas?..."

"Ora, meu pai, correram muito bem, mesmo muito bem, sem qualquer dificuldades!" - respondeu Arnaldo, com um sorriso de velhaco.

"Está bem, está bem..." - e o fidalgo de Carvalhinhos calou-se, matutando que ao filho assistira a mesma sorte que a ele: a esposa já vinha rodada...

Não deixava de pensar com os seus botões que quando aceitara a prima por esposa e a encontrara sem virgindade, a devia ter remetido logo para a casa dos sogros, mas remoeu e deixou correr. O seu filho, porém, que aceitava tudo de ânimo leve, teria que se vingar e, por conseguinte, limpar a honra de um e do outro...

Cismou, procurou alguns conselhos de amigos e, quatro meses depois das núpcias, indo à Beira Alta passar o Natal com a família, a nora já não retornou ao encantatório Minho...

Arnaldo nunca soube o que o seu progenitor engendrou, mas concordou com quanto ele lhe disse que engenhosamente urdira... Mexendo pauzinhos (e grossos troncos), obteve a anulação do casamento, o que, para a época, constituía uma autêntica e bem afiada lança em África.…

Uns dois anos após aquele insólito episódio, D. Cosme de Ataíde sugeriu ao filho que aceitasse por esposa uma senhora de Vila Verde, neta de um fidalgo de Pico de Regalados.

Desta feita, num ambiente de intimidade, realizou-se o segundo casamento de Arnaldo e, de novo, com subtileza, D. Cosme abordou o sucedido sob os lençóis na noite de núpcias.…

"A mesma coisa, senhor meu pai. Até me parece que foi mais fácil e bem conseguido do que na primeira..." - e, alorpado, lá desferiu uma das costumeiras risadinhas.

Frustrado, o progenitor afastou-se com semblante meditabundo, recolheu-se ao seu quarto e, sem se conter, proferiu umas imprecações, rematando, energicamente:

"Das minhas honradas barbas e do meu Arnaldo ninguém faz pouco, nem há de fazer!, juro por esta divina luz que me alumia!..."

Discretamente, D. Cosme iniciou uma nova batalha, que, desta vez, qual teia enredada, surtiu o efeito pretendido ao fim de um ano, tendo a segunda esposa de Arnaldo de Ataíde, desgostosa e desiludida, resolvido enclausurar-se num convento de freiras, no Porto, pedindo ela própria que o seu casamento fosse anulado...

D. Cosme esfregou as mãos de contente, embora, bem no âmago, se sentisse um desafortunado mártir do podre e conturbado mundo em que vivia...

Lá ia magicando que, no fundo, mais valia o filho morrer divorciado, como ele. Mas de imediato renascia aquela antiga e demolidora obsessão: e partiria para o Além sem deixar alguém que o perpetuasse no futuro?…Isso é que não!, porque um Ataíde não desistia nunca de atingir e concretizar os seus intentos...

Arnaldo de Ataíde, entretanto, festejara o trigésimo oitavo aniversário e vivia satisfeito consigo e com os outros, como lhe era peculiar...

O fidalgo de Carvalhinhos, agora quase septuagenário é que se não conformava com a sorte que o filho herdara na sua existência no globo terrestre, tendo em conta, claro, não poder ver garantida a desejada descendência...

A verdade é que ele até poderia ter descendentes bastardos, porque tinha boa figura e carteira bem recheada, não fossem as feridas profundas causadas por aquele vergonhoso falhanço no seu casamento e pelos dois do seu único filho, que se lhe não varriam da cabeça. E, por isso, jamais se permitiu uma aventura de rabos de saias!

Numa certa noite de agosto, pai e filho foram convidados para o aniversário da filha mais nova do fidalgo da Casa de Britelo, no estremo do concelho de Barcelos com o de Viana do Castelo. Guiomar, a aniversariante, celebrava dezassete risonhos verões. Era linda como um cravo, alta, nem magra nem gorda, muito alegre e simpática.

Quando ia já adiantada a madrugada do jantar, D. Cosme de Ataíde despediu-se da fidalguinha com um sorriso aberto de orelha a orelha, atirando esta farpa carinhosa:

"Como daria graças a Deus se pudesse ver a Guiomar senhora da Quinta de Carvalhinhos..."

Guiomar correspondeu ao sorriso e não baniu tão inesperado anseio do ilustre convidado...

No Domingo de Ramos do ano seguinte, na capelinha da Casa de Britelo, Arnaldo de Ataíde, dava a impressão que satisfeito, subia os degraus do altar para receber a sua jovem, linda e terceira esposa!

Na manhã imediata à primeira noite da lua de mel, D. Cosme, com velada curiosidade, interpelava o seu descendente:

"E então, Naldinho, foi como das outras vezes?..."

"Não, meu pai, desta vez não se consumou... E olhe que tentei mais do que uma vez..." - e mesmo assim, como anteriormente, não deixou de espelhar uma expressão de pateta, embora, desta feita, exibindo um certo ar de desencanto.

"Está bem, está bem: há que tentar até conseguires..." - e retirou-se o ancestral fidalgo, finalmente regozijado com o que ouvira, embora algo apreensivo, desta feita, com a incompreensível ineficácia do experiente noivo...

Quem não ficou indiferente à beleza de D. Guiomar foi Nel Peta, que redobrou as atenções aos dois amos mais novos... Não existiam segredos na família que ele desconhecesse e já fora informado de que Arnaldo ainda não tinha consumado aquilo que o velho fidalgo tanto almejava...

E, saborosas malhas que o Destino também tece!, porque a recém-casada o olhava com estima e enleada. Nel Peta, que estimava imenso os seus senhores e que, na sua filosofia de vida, achava que era de bom tom ajudar o seu confidente Arnaldo, foi pensando em abrir o custoso caminho da intimidade de D. Guiomar...

Docemente, foi cativando a jovem Guiomar, até a aproximação resultar em sucessivos encontros amorosos, ora fortuitos, ora combinados...

Um mês decorrido sobre o terceiro inquérito conjugal, D. Cosme quis saber do filho se as coisas estavam a correr bem e se iam dar fruto, ouvindo, de pronto, a resposta:

"Já consegui, snr. pai!..."

O certo é que, dez meses após o solene e concordado enlace, D. Guiomar enchia as medidas do contentamento do sogro: gerara uma raparigaça e, louvado seja Deus!, tão linda como a mãe!

Felicíssimo, D. Cosme de Ataíde decidiu ir visitar os longínquos lugares por onde peregrinou o seu avoengo, no final do século XVI, porque já se sentia plenamente realizado e, sobretudo, vingado do azar que lhe coubera aquando do seu casório com a priminha e do do descendente com as duas primeiras noras...

Coloquiou com o filho e com o fidelíssimo Nel Peta, seguro de que este lhe vigiaria as bonitas nora e neta, zelando pelos fartos teres e haveres da Quinta de Carvalhinhos, e lá abalou, aureolado por incontáveis grinaldas de alegria, paz, fidalguia e… consciência tranquila!


14-16 de julho de 2019
in "Tulha de manjares", 2024
José Fernandes da Silva 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

OS LÍRIOS

Os Salmos

Coisas que aprendi na vida - Onesimo Ranel